A linguagem amorosa no Cântico dos cânticos
Por Pe. Daniel Guindon LC
O Cântico dos Cânticos é um livro sapiencial de valor ainda subestimado. O título significa: “o cântico por excelência” ou “o cântico mais lindo”. Ele canta o amor humano como era vivido no momento da Criação do homem e da mulher, quer dizer, antes do pecado; um amor cheio de charme, englobando as três esferas humanas: física, emocional e espiritual.
Parece ser que o Cântico fora escrito ao redor do ano 450 a.C, inspirando-se no casamento entre o rei Salomão e a filha do Faraó. É composto de dez poemas de amor que descrevem a relação amorosa entre dois noivos ou jovens esposos.
João Paulo II dedicou seis catequeses para explicar o amor conjugal apresentado pelo Cântico, a partir de 20 de maio de 1984. Os temas que ele tratou foram os seguintes: o corpo como sinal do sacramento do matrimônio; a linguagem do corpo; as dimensões do amor esponsal; a verdade do amor que respeita a subjetividade recíproca; a tensão entre eros e ágape no amor; e finalmente, a ética do amor.
Eu também quero dedicar alguns artigos para colocar aos leitores um desafio: viver seu amor conjugal ou de namorados com a mesma intensidade e pureza dos dois moços do Cântico. Hoje, quero iniciar apresentando a linguagem amorosa deste poema.
O que talvez mais surpreenda o leitor ao mergulhar neste poema é a plasticidade da linguagem amorosa dos dois namorados (ou esposos, porque o autor não faz uma distinção clara). Eles não economizam palavras. Assim começa o texto:
O mais belo cântico de Salomão:
A AMADA: Beija-me com beijos de tua boca!
Teus amores são melhores do que o vinho,
O odor dos teus perfumes é suave,
teu nome é como um óleo escorrendo,
e as donzelas, se enamoram de ti ...
Arrasta-me contigo, corramos!
Leva-me, ó rei, aos teus aposentos
e exultemos! Alegremo-nos em ti!
Mais que ao vinho, celebremos teus amores!
Com razão se enamoram de ti...
O que está fazendo o autor: cantando o amor livre, bandeira da revolução cultural do ’68? Este livro justifica as relações pré-matrimoniais, o estatuto das pessoas que vivem amigadas? Não! Na cultura hebraica, depois do pai da noiva apresentar para o noivo a sua filha, eles viviam juntos durante um ano, e depois disto se formalizava a união com o casamento e a bênção do sacerdote. Esta celebração do casamento é simbolizada em Ct. 3,6 ss, onde o escritor descreve a procissão de Salomão sentado em uma liteira. Para o Cântico, como disse no começo, não existe pecado, e por isso toda união entre homem e mulher é por si matrimônio. Ao se entregarem um para o outro é um compromisso definitivo. Por isso o uso aleatório e indistinto no texto das palavras esposos e noivos.
O amor é belo, é doce. Os amantes experimentam o amor em toda a sua riqueza: são beijos, abraços, carícias, suspiros, união íntima, palavras de carinho, olhares tenros, encontros noturnos. Eles encontram todo tipo de palavras para falar do outro. A esposa é um lírio, um jumento, uma pomba, uma irmã, uma noiva, um vergel, um jardim fechado, uma fonte lacrada, a mulher mais bonita, como a lua e o sol. O esposo é um rei, uma macieira, um gamo, um filhote de gazela, o amado de seu coração, um irmão, uma videira.
Eles valorizam a beleza corporal, que é caminho natural para a sedução do coração. Eles gostam de se contemplar, e cada um busca as comparações mais originais para descrever quem seu coração ama. Eis como se exprime o esposo em relação a sua amada:
Roubaste meu coração,
minha irmã, ó noiva minha,
roubaste meu coração
com um só dos teus olhares,
uma volta dos colares.
Que belos são teus amores,
minha irmã, noiva minha;
teus amores são melhores do que o vinho,
mais fino que os outros aromas
é o odor dos teus perfumes.
Teus lábios são favo escorrendo,
ó noiva minha,
tens leite e mel sob a língua,
e o perfume de tuas roupas
é como a fragrância do Líbano. (Ct. 4, 9-11)
O modelo de amor que o Cântico apresenta é um amor que não envelhece. O amor é composto de uma dinâmica cíclica: a tensão da busca e a alegria do encontro e da união íntima. Eles não podem permanecer sempre juntos, e se buscam continuamente. Às vezes não se encontram, e isto faz crescer o desejo do outro (acompanhado de certa angústia). São oito capítulos quem têm um início, mas não parecem ter fim, pois quando acaba o último versículo, é tempo para voltar ao primeiro.
Eu convido meus leitores a analisar sua relação com o esposo/a ou o namorado/a. Existe o mesmo encanto? Por que a rotina? Não será em parte porque perderam a riqueza da linguagem amorosa, dos gestos, dos detalhes de amor? Talvez a falta de pureza, a concupiscência e o egoísmo ofuscam o amor. O Cântico apresenta um amor de entrega, de doação: “eu sou do meu amado, seu desejo o traz a mim”. É esta doação mútua, esta entrega recíproca que faz o amor forte como a morte, como sinete no braço.
Grava-me, como um selo em teu coração,
como um selo em teu braço;
pois o amor é forte, é como a morte!
Cruel como o abismo é a paixão;
suas chamas são chamas de fogo
uma faísca de Iahweh!
As águas da torrente jamais poderão apagar o amor,
nem os rios afogá-lo.
Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor...
Seria tratado com desprezo. (Ct. 8, 6-7)
Corpo e coração no Cântico dos Cânticos
Quero falar hoje de dois protagonistas especiais do Cântico dos cânticos: trata-se do corpo e do coração.
Podemos ficar impressionados, lendo o Cântico, da descrição sensual e erótica da relação de amor entre os dois protagonistas. Trata-se de um amor humano, e o autor não quer negá-lo: um amor concreto, vivo, apaixonado, erótico. Ele descreve o que desperta o amor do outro: o seu corpo, a sua beleza física; desperta o amor como paixão ou brama . Expõe também o que os esposos ou noivos sentem na presença do amado, e os seus sentimentos na ausência do ser querido. Expressa com imagens a união conjugal.
Precisamos neste momento entender a linguagem semítica. Na língua dos semitas, os conceitos abstratos eram expressos através de palavras muito concretas e plásticas. Por exemplo, para expressar o conceito de fé ou de verdade se acostumava utilizar a palavra "emet", que tem o significado de "solidez" ou "rocha".
Assim, no nosso poema, a palavra "corpo" não se limita ao significado da carne humana, mas se refere à totalidade do homem, incluindo a sua alma. Contemplando o corpo da sua amada, o namorado vê toda a pessoa dela; ele atribui a beleza também a sua alma porque o corpo é sacramento de toda a pessoa, como explicamos nos artigos anteriores. O amor que suscita esta contemplação não é cego e irracional, mas um amor bem consciente e por isso mesmo casto. Um amor que se concretiza na mútua doação realizada no matrimônio ao capítulo três. O esposo contempla o corpo da donzela que lhe pertence, e seu olhar é puro porque respeita a verdade.
O problema de nossa sociedade hodierna, explica Bento XVI na Deus Caritas Est, é que quer que o amor seja fruto somente de uma paixão, de um embriagamento divino, e por isso que seja sem compromisso. Tudo seria lícito com a condição das duas pessoas atuarem de livre vontade. A nossa sociedade não quer associar a dimensão de doação e de compromisso ao ato de amor entre duas pessoas.
O respeito pela verdade do amor faz com que o Cântico não seja censurável como eram os poemas egípcios e babilônicos: o amor não é por um objeto material – o corpo -, mas para toda a pessoa.
Com esta explicação podemos agora nos aproximar do texto sagrado e valorizar as palavras dos dois namorados. Eles estão extasiados diante do corpo físico do parceiro, mas com uma visão realmente sacramental. O que se diz do corpo vale para todo o sujeito.
1 Como és bela, minha amada, como és bela! ...
São pombas teus olhos escondidos sob o véu.
Teu cabelo ... um rebanho de cabras ondulando pelas faldas de Galaad.
2 Teus dentes ... um rebanho tosquiado subindo após o banho,
cada ovelha com seus gêmeos, nenhuma delas sem cria.
3 Teus lábios são fita vermelha, tua fala melodiosa;
metades de romã são teus seios mergulhados sob o véu.
4 Teu pescoço é a torre de Davi, construído com defesas;
dela pendem mil escudos e armaduras dos heróis.
5 Teus seios são dois filhotes, filhos gêmeos de gazela,
pastando entre açucenas. (Ct 4,1-5)
O Cântico não nega a verdade, e a visão cristã e humana da sexualidade, seguindo este texto revelado, também não. O corpo está na origem do amor humano e na essência mesma do amor matrimonial. É o atrativo físico que suscita a aproximação dos namorados, e é o ato conjugal dos esposos que consuma o matrimônio ratificado diante das testemunhas. Embora o corpo, com o passar dos anos, vai perdendo o vigor e o seu charme, ele precisa ser cuidado para sempre espelhar a beleza interior da pessoa. Porque o amor nunca será platônico, mas sempre para uma pessoa de carne e ossos. A explicação que nós estamos dando justifica as palavras que seguem aos versículos já citados. A amada é toda bela não tanto porque não tem nenhum defeito físico, mas a causa da sua interioridade.
7 És toda bela, minha amada, e não tens um só defeito!
8 Vem do Líbano, noiva minha, vem do Líbano
e faz tua entrada comigo.
Desce do alto do Amaná, do cume do Sanir e do Hermon,
esconderijo dos leões, montes onde rondam as panteras.
9 Roubaste meu coração, minha írmã, o noiva minha,
roubaste meu coração com um só dos teus olhares,
uma volta dos colares. (Ct 4, 7-9)
O texto nos introduz ao segundo protagonista, o coração. A palavra aparece cinco vezes no Cântico. Hoje entendemos o coração como órgão que faz circular o sangue, ou, na linguagem poética, é o sentimento de amor das nossas entranhas. O autor sagrado não o entende assim. Coração é a palavra usada para significar a alma da pessoa. A alma é a sede da inteligência, é o centro da pessoa. Quando o amado diz que a noiva roubou seu coração, quer dizer: “roubaste minha alma, o centro do meu ser, toda a minha vida”.
Existe unidade entre corpo e coração. O corpo exprime com seus gestos o que o coração sente; e o corpo da amada põe em movimento o coração do noivo. Ele se aproxima dela e a experiência do seu amor cresce. Não é só a vista que se regozija da presença da amada, mas também o tato e o olfato:
10 Que belos são teus amores, minha irmã, noiva minha;
teus amores são melhores do que o vinho,
mais fino que os outros aromas
é o odor dos teus perfumes.
11 Teus lábios são favo escorrendo, ó noiva minha,
tens leite e mel sob a língua,
e o perfume de tuas roupas é como a fragrância do Líbano. (Ct 4,10-11)
O amado se aproxima dela porque ela consente. É um amor realizado na liberdade. O esposo se dá conta que sua amada é um jardim fechado. Somente se ela abrir a porta ele poderá entrar. Os esposos vivem o amor no respeito e da doação mútuos. Ela diz ao versículo 16: “Entre o meu amado em seu jardim e coma de seus frutos saborosos!” E então ele se une a ela.
12 És jardim fechado, minha irmã, noiva minha,
és jardim, fechado, uma fonte lacrada.
A AMADA
16 Desperta, vento norte, aproxima-te, vento sul,
soprai no meu jardim para espalhar seus perfumes.
Entre o meu amado em seu jardim
e coma de seus frutos saborosos! (Ct 4,12.16)
Mais adiante, quando o amado vai visitá-la de noite, a noiva diz: “eu dormia, mas meu coração velava” (Ct 5,2). O verdadeiro amor dos esposos nunca dorme; sempre está em vela. A separação, quando física, nunca é espiritual. A alma sempre voa onde está o amado. Esta é a experiência de quem não deixou morrer o seu amor.
Finalmente, no último capítulo, o amado pede para ela: “grava-me como um selo em teu coração” (Ct 8,6). O amor é para sempre. É como um selo, uma tatuagem: uma vez gravado, não dá mais para tirar. Está gravado na alma, na dimensão espiritual da pessoa, naquilo que é mais profundo no homem. O matrimônio faz do homem e da mulher uma só carne. “O que Deus uniu, o homem não separe”.
Vemos assim quanto é belo o amor dos esposos, dos noivos e dos namorados quando se respeita a verdade inserida no coração humano. A linguagem do amor é muito rica, possui expressões próprias segundo o compromisso dos parceiros. A maturidade deles consiste em encontrar a expressão adequada, que respeite a verdade do seu compromisso. Porque os gestos do amor conjugal são diversos das manifestações de amor de dois namorados ou dos noivos.
No próximo artigo, irei falar mais sobre a linguagem corporal apresentada no Cântico.
Eu sou do meu amado, e meu amado é meu
Há dois anos acompanhei espiritualmente um acampamento de meninas italianas entre 9 e 10 anos na região do Lazio. É a idade própria da “amiga do coração” (l’amica del cuore). Elas escolhem uma amiga, e esta só pode ser dela, não pode pertencer a mais ninguém. Aconteceu que depois de vários dias algumas delas romperam com a “amiga do coração” por diversos motivos triviais, e começou a reinar uma grande fofoca no acampamento. As animadoras, já não sabendo o que fazer, pediram-me para conversar com elas sobre a virtude da caridade e sobre o valor do perdão e da reconciliação.
Esta concepção do amor como possessão faz parte do processo psicológico de amadurecimento da pessoa humana. A criança concebe o mundo de maneira egocêntrica, onde ele quer tudo para si e tem dificuldade para partilhar. Já na adolescência, vai aprendendo a respeitar os amigos e a não mais tratá-los como objetos. Porém, hoje em dia, ao analisar o relacionamento dos namorados, vemos com frequência o amado tratar o parceiro como um objeto de estimação ou de luxo. O garoto gosta de passear com a sua namorada diante dos companheiros para ostentá-la. Isso acontece porque vivem um amor de possessão; eles estão ainda na fase do amor na qual eu sou mais importante que o outro, e o parceiro é um objeto que me pertence.
O Cântico nos apresenta uma forma diversa de amor. O relacionamento não se caracteriza pela possessão, mas pela doação. A amada diz: “eu sou do meu amado, e meu amado é meu” (Ct 6,3). A pertença não é por apropriação, mas por doação. Antes de possuir o seu amado, ela se entrega a ele. Esta frase aparece duas vezes no Cântico, e outra vez de forma incompleta: em 2,16; 6,3 e 7,11.
Para muitos hoje o amor é paixão. A paixão enlouquece e impulsiona a pessoa a se apadroar de quem o atrai, sem respeitar a sua liberdade. É o que indicam os estupros e os atos de pedofilia. Ou sem chegar a estes extremos, a paixão leva a comportamentos violentos entre os parceiros.
Duas pessoas que entendem iniciar a aventura do matrimônio precisam se prometer, se manifestar e viver um grau maior de amor. Somente baseados no amor de ágape, a vida deles terá êxito.
O Cântico ilustra magnificamente este amor baseado na liberdade e na mútua doação. Em 5,2 ss, mostra uma cena romântica no campo. A amada mora numa casinha de verão no meio do jardim. De noite, impulsionado pela sua paixão, o amado chega até lá e bate à porta. Como ela demora em abrir, ele tenta forçar a porta. Coloca o dedo na fenda, mas sem êxito. A noiva se incorpora no seu leito, indecisa. A sua liberdade é a chave do encontro. Somente se ela se entregar a ele, se ela abrir a porta da casa que simboliza seu coração, acontecerá a união nupcial. O Cântico respeita o dinamismo da liberdade e do autêntico amor. Depois de um tempo, ela se decide, coloca seu vestido e abre a porta. Mas o noivo sumiu! A união não acontece mais porque o noivo renunciou, porque ele retirou a entrega de si mesmo. O amor unitivo é fruto de duas liberdades que se encontram e se doam.
“Eu sou de meu amado e meu amado é meu”. Além da entrega consciente e livre, esta frase expressa a irreversibilidade do relacionamento matrimonial. A entrega de um presente é definitiva. Não se dá algo para depois apropriar-se dele novamente. No Cântico percebemos a fidelidade dos esposos. Não há mulher mais bonita, não há marido mais atrativo. O amor não envelhece porque não é baseado somente no atrativo físico, mas porque os esposos cultivam uma amizade sincera, renovam constantemente os gestos de amor e se respeitam na manifestação do seu amor. Eles perseveram no amor porque são coerentes com a entrega mútua que eles fizeram, e receberam esta entrega no respeito, não como um objeto de possessão, mas como um bem precioso, uma pessoa, um sujeito espiritual que tem a mesma dignidade que si mesmo.
É este tipo de relacionamento no amor que a sociedade de hoje precisa redescobrir. É urgente reencontrar o equilíbrio entre eros e ethos, entre o amor apaixonado e a liberdade alheia. Somente sobre a entrega mútua de duas vontades livres pode se basear um matrimônio feliz e duradouro. O amor de ágape, o amor generoso e desinteressado é a raiz da vida nupcial. No próximo artigo, falaremos amplamente sobre a harmonia do casal do Cântico.
***Sobre o autor: Pe. Daniel Guindon, LC,
formado no Ateneu Pontifício Regina Apostolorum de Roma,
é atualmente professor de teologia moral sexual no seminário
Maria Mater Ecclesiae de São Paulo.
Cântico dos Cânticos: O homem tal qual ele é diante da mulher tal qual ela é
O Cântico dos Cânticos: dois amantes que se buscam, que se olham, se contemplam. Só se lembram do amor e se esquecem do amor. Em tudo procuram o amor e em tudo o evitam.
Têm receio de abrir a porta de casa ao amor e ousadia para enfrentar, em nome dele, as austeras sentinelas que vigiam a cidade, quando e noite. Tem receio dos mil lugares onde o amor assoma, mas em mil lugares o buscam, se, por uma hesitação ou um silêncio, dele se perdem.
Escondem-se e reencontram-se. Incessante deslocação de corpos. De desejos. Como num jogo. E dizem: “O meu amado e para mim como um ramo de mirra”; “és formosa amiga minha, os teus olhos são como os das pombas”; ou “grava-me como um selo em teu coração/ como um selo em teu braço;/ pois o amor e forte como a morte”.
Falam do seu amor com uma intensidade tal que nos fazem ver, como escreve Paul Beauchamp, que “não existe sexualidade sem a palavra, como não existe desejo. A sexualidade humana e aquela que é dita”.
Os rabinos, no sínodo de Jabneh (90 d.C.), discutiram sobre a canonicidade do Cântico dos Cânticos. Alguns achavam‑no demasiado cheio de paixão. E lamentavam-se, sobretudo, que fosse, frequentemente, repetido em tabernas.
Mas na Mishna esta escrito: “O mundo inteiro não e digno do dia em que o Cântico dos Cânticos foi dado a Israel. Todos os livros são santos, mas o Cântico dos Cânticos e o mais santo de todos”.
Santa Teresa de Ávila diz recordar-se de “ouvir a um religioso um sermão admirável em extremo, e o mais dele foi a declarar estes regalos de que a Esposa tratava com Deus. E houve tanto riso e foi tão mal tomado o que disse, porque falava de amor, que estava espantada”. Contudo, a sua experiencia de leitora deste livro é bem diversa: "O Senhor tem-me dado, desde há alguns anos para cá, um grande gosto cada vez que ouço ou leio algumas palavras do Cântico dos Cânticos, e isto em tanto extremo que, sem entender com clareza o latim, a minha alma mais se recolhia e movia então do que com os livros muito devotos que entendo”.
Um dos contributos mais originais que a modernidade inscreveu na história da interpretação deste singular livro tem sido o da sua interseção com outros campos culturais, valorizando assim o fenômeno da intertextualidade. Os pólos que mais frequentemente recorrem neste confronto são o egípcio, o mesopotâmico e o da área sírio-palestina.
A dar confirmação a uma influência egípcia (sugerida, por exemplo, pelos perturbadores paralelos entre algumas passagens do nosso livro e textos contidos quer no Papyrus Harris 500, descoberto no Ramesseum de Tebas, quer nos Cantos da Grande Alegria do Coração do Papyrus Chester Beatty I), o Cântico dos Cânticos seria uma antologia de textos de diversão destinados, no Egito, as ocasiões festivas.
Esta tese tem um aliado vigoroso e imprevisto em Teodoro de Mopsuéstia que, no séc. V, contestava a canonicidade do Cântico dos Cânticos dizendo que ele celebrava, “sem intenção suplementar, as núpcias de Salomão com uma princesa egípcia”.
Por sua vez, a relação com a literatura mesopotâmica far-se-ia através de textos de índole cultual, vinculados a um cenário de hierogamia, que colocavam em ação as rivalidades amorosas dos deuses Dummuzi e Enkimdu e da deusa Inanna. Enquanto que da área sírio-palestina a influência viria sobretudo do folclore praticado no ciclo dos sete dias festivos que se sucedia a coroação matrimonial dos esposos, a maneira de um rei e de uma rainha.
Mas se é verdade que o confronto com estes modelos literários, próximos no tempo e no espaço ao escrito bíblico, fornece alguns contributos esclarecedores, ele não elide uma dificuldade essencial: o facto do estudo comparativo ser extremamente fragmentário, ignorando, como escreve Anne-Marie Pelletier, “a coerência global do texto” e a sua “inserção num contexto singular que o qualifica e o interpreta necessariamente”.
O Cântico dos Cânticos retoma vocabulário comum aos cultos e rituais de exercícios religiosos coevos, nomeadamente vocabulário hierogâmico, mas fá-lo para o reinscrever num contexto que nega a relação mitológica do homem e da mulher, formulada aqui em termos históricos e não enquanto participação mágica do horizonte humano no divino.
Este livro, do séc. V ou IV a.C., como defende Maillot, “é, portanto, uma desmitização, uma humanização e uma liberalização do amor. E a libertação em relação aos mitos da fecundidade. E a afirmação que o amor de um homem e de uma mulher e em si mesmo justificado”.
Recordemos que nenhum outro livro bíblico dá a palavra à mulher numa tal proporção. Ela busca e é buscada. Pede e é pedida. A sua palavra abre o canto: “Beije-me ele com os beijos da sua boca”. A mulher olha para o homem e avizinha-se a ele com a mesma impaciência e a mesma alegria que ele a ela.
Este co-protagonismo é muito interessante. Porque tensões, paradoxos, desníveis (por exemplo, o facto de a mulher não ser tratada em paridade, não ser tomada como sujeito) que não conseguiam resolução em outros tipos de discurso, conseguem-na primeiramente no discurso amoroso.
Na opinião do teólogo Karl Barth, os textos de Génesis 2 e o do Cântico dos Cânticos são os que, no Antigo Testamento, perspetivam de modo mais original o amor humano.
A tendência predominante é a que situa a sexualidade do Ser Humano em função quase exclusiva da posteridade e, por conseguinte, no contexto da vocação deste povo e da expectativa messiânica (um dos nascidos, entre os descendentes de David, seria o Messias, por isso a instituição matrimonial era tão importante).
No Cântico dos Cânticos temos a afirmação de um outro aspeto (em verdade, mais complementar que opositor): “O enamoramento – escreve Barth – não já do pai ou do chefe de família potencial, mas simplesmente do homem tal qual ele e diante da mulher tal qual ela é”.
José Tolentino Mendonça
In As estratégias do desejo
22.11.11