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domingo, 30 de março de 2014

O Cântico mais lindo




A linguagem amorosa no Cântico dos cânticos



Por Pe. Daniel Guindon LC

O Cântico dos Cânticos é um livro sapiencial de valor ainda subestimado. O título significa: “o cântico por excelência” ou “o cântico mais lindo”. Ele canta o amor humano como era vivido no momento da Criação do homem e da mulher, quer dizer, antes do pecado; um amor cheio de charme, englobando as três esferas humanas: física, emocional e espiritual.

Parece ser que o Cântico fora escrito ao redor do ano 450 a.C, inspirando-se no casamento entre o rei Salomão e a filha do Faraó. É composto de dez poemas de amor que descrevem a relação amorosa entre dois noivos ou jovens esposos. 



João Paulo II dedicou seis catequeses para explicar o amor conjugal apresentado pelo Cântico, a partir de 20 de maio de 1984. Os temas que ele tratou foram os seguintes: o corpo como sinal do sacramento do matrimônio; a linguagem do corpo; as dimensões do amor esponsal; a verdade do amor que respeita a subjetividade recíproca; a tensão entre eros e ágape no amor; e finalmente, a ética do amor. 

Eu também quero dedicar alguns artigos para colocar aos leitores um desafio: viver seu amor conjugal ou de namorados com a mesma intensidade e pureza dos dois moços do Cântico. Hoje, quero iniciar apresentando a linguagem amorosa deste poema. 

O que talvez mais surpreenda o leitor ao mergulhar neste poema é a plasticidade da linguagem amorosa dos dois namorados (ou esposos, porque o autor não faz uma distinção clara). Eles não economizam palavras. Assim começa o texto:

O mais belo cântico de Salomão: 
A AMADA: Beija-me com beijos de tua boca! 
Teus amores são melhores do que o vinho,
O odor dos teus perfumes é suave, 
teu nome é como um óleo escorrendo,
e as donzelas, se enamoram de ti ... 
Arrasta-me contigo, corramos!
Leva-me, ó rei, aos teus aposentos 
e exultemos! Alegremo-nos em ti! 
Mais que ao vinho, celebremos teus amores! 
Com razão se enamoram de ti...

O que está fazendo o autor: cantando o amor livre, bandeira da revolução cultural do ’68? Este livro justifica as relações pré-matrimoniais, o estatuto das pessoas que vivem amigadas? Não! Na cultura hebraica, depois do pai da noiva apresentar para o noivo a sua filha, eles viviam juntos durante um ano, e depois disto se formalizava a união com o casamento e a bênção do sacerdote. Esta celebração do casamento é simbolizada em Ct. 3,6 ss, onde o escritor descreve a procissão de Salomão sentado em uma liteira. Para o Cântico, como disse no começo, não existe pecado, e por isso toda união entre homem e mulher é por si matrimônio. Ao se entregarem um para o outro é um compromisso definitivo. Por isso o uso aleatório e indistinto no texto das palavras esposos e noivos. 

O amor é belo, é doce. Os amantes experimentam o amor em toda a sua riqueza: são beijos, abraços, carícias, suspiros, união íntima, palavras de carinho, olhares tenros, encontros noturnos. Eles encontram todo tipo de palavras para falar do outro. A esposa é um lírio, um jumento, uma pomba, uma irmã, uma noiva, um vergel, um jardim fechado, uma fonte lacrada, a mulher mais bonita, como a lua e o sol. O esposo é um rei, uma macieira, um gamo, um filhote de gazela, o amado de seu coração, um irmão, uma videira. 

Eles valorizam a beleza corporal, que é caminho natural para a sedução do coração. Eles gostam de se contemplar, e cada um busca as comparações mais originais para descrever quem seu coração ama. Eis como se exprime o esposo em relação a sua amada:

Roubaste meu coração, 
minha irmã, ó noiva minha, 
roubaste meu coração 
com um só dos teus olhares, 
uma volta dos colares. 
Que belos são teus amores, 
minha irmã, noiva minha; 
teus amores são melhores do que o vinho,
mais fino que os outros aromas 
é o odor dos teus perfumes. 
Teus lábios são favo escorrendo, 
ó noiva minha, 
tens leite e mel sob a língua, 
e o perfume de tuas roupas
é como a fragrância do Líbano. (Ct. 4, 9-11)


O modelo de amor que o Cântico apresenta é um amor que não envelhece. O amor é composto de uma dinâmica cíclica: a tensão da busca e a alegria do encontro e da união íntima. Eles não podem permanecer sempre juntos, e se buscam continuamente. Às vezes não se encontram, e isto faz crescer o desejo do outro (acompanhado de certa angústia). São oito capítulos quem têm um início, mas não parecem ter fim, pois quando acaba o último versículo, é tempo para voltar ao primeiro. 

Eu convido meus leitores a analisar sua relação com o esposo/a ou o namorado/a. Existe o mesmo encanto? Por que a rotina? Não será em parte porque perderam a riqueza da linguagem amorosa, dos gestos, dos detalhes de amor? Talvez a falta de pureza, a concupiscência e o egoísmo ofuscam o amor. O Cântico apresenta um amor de entrega, de doação: “eu sou do meu amado, seu desejo o traz a mim”. É esta doação mútua, esta entrega recíproca que faz o amor forte como a morte, como sinete no braço.

Grava-me, como um selo em teu coração,
como um selo em teu braço; 
pois o amor é forte, é como a morte! 
Cruel como o abismo é a paixão; 
suas chamas são chamas de fogo 
uma faísca de Iahweh!
As águas da torrente jamais poderão apagar o amor,
nem os rios afogá-lo.
Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor... 
Seria tratado com desprezo. (Ct. 8, 6-7)





Corpo e coração no Cântico dos Cânticos


Quero falar hoje de dois protagonistas especiais do Cântico dos cânticos: trata-se do corpo e do coração.

Podemos ficar impressionados, lendo o Cântico, da descrição sensual e erótica da relação de amor entre os dois protagonistas. Trata-se de um amor humano, e o autor não quer negá-lo: um amor concreto, vivo, apaixonado, erótico. Ele descreve o que desperta o amor do outro: o seu corpo, a sua beleza física; desperta o amor como paixão ou brama . Expõe também o que os esposos ou noivos sentem na presença do amado, e os seus sentimentos na ausência do ser querido. Expressa com imagens a união conjugal.

Precisamos neste momento entender a linguagem semítica. Na língua dos semitas, os conceitos abstratos eram expressos através de palavras muito concretas e plásticas. Por exemplo, para expressar o conceito de fé ou de verdade se acostumava utilizar a palavra "emet", que tem o significado de "solidez" ou "rocha".

Assim, no nosso poema, a palavra "corpo" não se limita ao significado da carne humana, mas se refere à totalidade do homem, incluindo a sua alma. Contemplando o corpo da sua amada, o namorado vê toda a pessoa dela; ele atribui a beleza também a sua alma porque o corpo é sacramento de toda a pessoa, como explicamos nos artigos anteriores. O amor que suscita esta contemplação não é cego e irracional, mas um amor bem consciente e por isso mesmo casto. Um amor que se concretiza na mútua doação realizada no matrimônio ao capítulo três. O esposo contempla o corpo da donzela que lhe pertence, e seu olhar é puro porque respeita a verdade.

O problema de nossa sociedade hodierna, explica Bento XVI na Deus Caritas Est, é que quer que o amor seja fruto somente de uma paixão, de um embriagamento divino, e por isso que seja sem compromisso. Tudo seria lícito com a condição das duas pessoas atuarem de livre vontade. A nossa sociedade não quer associar a dimensão de doação e de compromisso ao ato de amor entre duas pessoas.

O respeito pela verdade do amor faz com que o Cântico não seja censurável como eram os poemas egípcios e babilônicos: o amor não é por um objeto material – o corpo -, mas para toda a pessoa.

Com esta explicação podemos agora nos aproximar do texto sagrado e valorizar as palavras dos dois namorados. Eles estão extasiados diante do corpo físico do parceiro, mas com uma visão realmente sacramental. O que se diz do corpo vale para todo o sujeito.

1 Como és bela, minha amada, como és bela! ... 
São pombas teus olhos escondidos sob o véu. 
Teu cabelo ... um rebanho de cabras ondulando pelas faldas de Galaad.
2 Teus dentes ... um rebanho tosquiado subindo após o banho, 
cada ovelha com seus gêmeos, nenhuma delas sem cria. 
3 Teus lábios são fita vermelha, tua fala melodiosa; 
metades de romã são teus seios mergulhados sob o véu. 
4 Teu pescoço é a torre de Davi, construído com defesas; 
dela pendem mil escudos e armaduras dos heróis.
5 Teus seios são dois filhotes, filhos gêmeos de gazela, 
pastando entre açucenas. (Ct 4,1-5)





O Cântico não nega a verdade, e a visão cristã e humana da sexualidade, seguindo este texto revelado, também não. O corpo está na origem do amor humano e na essência mesma do amor matrimonial. É o atrativo físico que suscita a aproximação dos namorados, e é o ato conjugal dos esposos que consuma o matrimônio ratificado diante das testemunhas. Embora o corpo, com o passar dos anos, vai perdendo o vigor e o seu charme, ele precisa ser cuidado para sempre espelhar a beleza interior da pessoa. Porque o amor nunca será platônico, mas sempre para uma pessoa de carne e ossos. A explicação que nós estamos dando justifica as palavras que seguem aos versículos já citados. A amada é toda bela não tanto porque não tem nenhum defeito físico, mas a causa da sua interioridade.

7 És toda bela, minha amada, e não tens um só defeito! 
8 Vem do Líbano, noiva minha, vem do Líbano 
e faz tua entrada comigo.
Desce do alto do Amaná, do cume do Sanir e do Hermon, 
esconderijo dos leões, montes onde rondam as panteras.
9 Roubaste meu coração, minha írmã, o noiva minha, 
roubaste meu coração com um só dos teus olhares, 
uma volta dos colares. (Ct 4, 7-9) 

O texto nos introduz ao segundo protagonista, o coração. A palavra aparece cinco vezes no Cântico. Hoje entendemos o coração como órgão que faz circular o sangue, ou, na linguagem poética, é o sentimento de amor das nossas entranhas. O autor sagrado não o entende assim. Coração é a palavra usada para significar a alma da pessoa. A alma é a sede da inteligência, é o centro da pessoa. Quando o amado diz que a noiva roubou seu coração, quer dizer: “roubaste minha alma, o centro do meu ser, toda a minha vida”.

Existe unidade entre corpo e coração. O corpo exprime com seus gestos o que o coração sente; e o corpo da amada põe em movimento o coração do noivo. Ele se aproxima dela e a experiência do seu amor cresce. Não é só a vista que se regozija da presença da amada, mas também o tato e o olfato:

10 Que belos são teus amores, minha irmã, noiva minha; 
teus amores são melhores do que o vinho, 
mais fino que os outros aromas
é o odor dos teus perfumes. 
11 Teus lábios são favo escorrendo, ó noiva minha, 
tens leite e mel sob a língua, 
e o perfume de tuas roupas é como a fragrância do Líbano. (Ct 4,10-11)



O amado se aproxima dela porque ela consente. É um amor realizado na liberdade. O esposo se dá conta que sua amada é um jardim fechado. Somente se ela abrir a porta ele poderá entrar. Os esposos vivem o amor no respeito e da doação mútuos. Ela diz ao versículo 16: “Entre o meu amado em seu jardim e coma de seus frutos saborosos!” E então ele se une a ela.

12 És jardim fechado, minha irmã, noiva minha, 
és jardim, fechado, uma fonte lacrada. 
A AMADA 
16 Desperta, vento norte, aproxima-te, vento sul, 
soprai no meu jardim para espalhar seus perfumes.
Entre o meu amado em seu jardim 
e coma de seus frutos saborosos! (Ct 4,12.16)

Mais adiante, quando o amado vai visitá-la de noite, a noiva diz: “eu dormia, mas meu coração velava” (Ct 5,2). O verdadeiro amor dos esposos nunca dorme; sempre está em vela. A separação, quando física, nunca é espiritual. A alma sempre voa onde está o amado. Esta é a experiência de quem não deixou morrer o seu amor.

Finalmente, no último capítulo, o amado pede para ela: “grava-me como um selo em teu coração” (Ct 8,6). O amor é para sempre. É como um selo, uma tatuagem: uma vez gravado, não dá mais para tirar. Está gravado na alma, na dimensão espiritual da pessoa, naquilo que é mais profundo no homem. O matrimônio faz do homem e da mulher uma só carne. “O que Deus uniu, o homem não separe”.

Vemos assim quanto é belo o amor dos esposos, dos noivos e dos namorados quando se respeita a verdade inserida no coração humano. A linguagem do amor é muito rica, possui expressões próprias segundo o compromisso dos parceiros. A maturidade deles consiste em encontrar a expressão adequada, que respeite a verdade do seu compromisso. Porque os gestos do amor conjugal são diversos das manifestações de amor de dois namorados ou dos noivos.

No próximo artigo, irei falar mais sobre a linguagem corporal apresentada no Cântico.




Eu sou do meu amado, e meu amado é meu


Há dois anos acompanhei espiritualmente um acampamento de meninas italianas entre 9 e 10 anos na região do Lazio. É a idade própria da “amiga do coração” (l’amica del cuore). Elas escolhem uma amiga, e esta só pode ser dela, não pode pertencer a mais ninguém. Aconteceu que depois de vários dias algumas delas romperam com a “amiga do coração” por diversos motivos triviais, e começou a reinar uma grande fofoca no acampamento. As animadoras, já não sabendo o que fazer, pediram-me para conversar com elas sobre a virtude da caridade e sobre o valor do perdão e da reconciliação.

Esta concepção do amor como possessão faz parte do processo psicológico de amadurecimento da pessoa humana. A criança concebe o mundo de maneira egocêntrica, onde ele quer tudo para si e tem dificuldade para partilhar. Já na adolescência, vai aprendendo a respeitar os amigos e a não mais tratá-los como objetos. Porém, hoje em dia, ao analisar o relacionamento dos namorados, vemos com frequência o amado tratar o parceiro como um objeto de estimação ou de luxo. O garoto gosta de passear com a sua namorada diante dos companheiros para ostentá-la. Isso acontece porque vivem um amor de possessão; eles estão ainda na fase do amor na qual eu sou mais importante que o outro, e o parceiro é um objeto que me pertence.

O Cântico nos apresenta uma forma diversa de amor. O relacionamento não se caracteriza pela possessão, mas pela doação. A amada diz: “eu sou do meu amado, e meu amado é meu” (Ct 6,3). A pertença não é por apropriação, mas por doação. Antes de possuir o seu amado, ela se entrega a ele. Esta frase aparece duas vezes no Cântico, e outra vez de forma incompleta: em 2,16; 6,3 e 7,11.

Para muitos hoje o amor é paixão. A paixão enlouquece e impulsiona a pessoa a se apadroar de quem o atrai, sem respeitar a sua liberdade. É o que indicam os estupros e os atos de pedofilia. Ou sem chegar a estes extremos, a paixão leva a comportamentos violentos entre os parceiros.
Duas pessoas que entendem iniciar a aventura do matrimônio precisam se prometer, se manifestar e viver um grau maior de amor. Somente baseados no amor de ágape, a vida deles terá êxito.

O Cântico ilustra magnificamente este amor baseado na liberdade e na mútua doação. Em 5,2 ss, mostra uma cena romântica no campo. A amada mora numa casinha de verão no meio do jardim. De noite, impulsionado pela sua paixão, o amado chega até lá e bate à porta. Como ela demora em abrir, ele tenta forçar a porta. Coloca o dedo na fenda, mas sem êxito. A noiva se incorpora no seu leito, indecisa. A sua liberdade é a chave do encontro. Somente se ela se entregar a ele, se ela abrir a porta da casa que simboliza seu coração, acontecerá a união nupcial. O Cântico respeita o dinamismo da liberdade e do autêntico amor. Depois de um tempo, ela se decide, coloca seu vestido e abre a porta. Mas o noivo sumiu! A união não acontece mais porque o noivo renunciou, porque ele retirou a entrega de si mesmo. O amor unitivo é fruto de duas liberdades que se encontram e se doam.

“Eu sou de meu amado e meu amado é meu”. Além da entrega consciente e livre, esta frase expressa a irreversibilidade do relacionamento matrimonial. A entrega de um presente é definitiva. Não se dá algo para depois apropriar-se dele novamente. No Cântico percebemos a fidelidade dos esposos. Não há mulher mais bonita, não há marido mais atrativo. O amor não envelhece porque não é baseado somente no atrativo físico, mas porque os esposos cultivam uma amizade sincera, renovam constantemente os gestos de amor e se respeitam na manifestação do seu amor. Eles perseveram no amor porque são coerentes com a entrega mútua que eles fizeram, e receberam esta entrega no respeito, não como um objeto de possessão, mas como um bem precioso, uma pessoa, um sujeito espiritual que tem a mesma dignidade que si mesmo.

É este tipo de relacionamento no amor que a sociedade de hoje precisa redescobrir. É urgente reencontrar o equilíbrio entre eros e ethos, entre o amor apaixonado e a liberdade alheia. Somente sobre a entrega mútua de duas vontades livres pode se basear um matrimônio feliz e duradouro. O amor de ágape, o amor generoso e desinteressado é a raiz da vida nupcial. No próximo artigo, falaremos amplamente sobre a harmonia do casal do Cântico.



***Sobre o autor: Pe. Daniel Guindon, LC, 
formado no Ateneu Pontifício Regina Apostolorum de Roma, 
é atualmente professor de teologia moral sexual no seminário 


Maria Mater Ecclesiae de São Paulo.





Cântico dos Cânticos: O homem tal qual ele é diante da mulher tal qual ela é


Cântico dos Cânticos: dois amantes que se buscam, que se olham, se contemplam. Só se lembram do amor e se esquecem do amor. Em tudo procuram o amor e em tudo o evitam.

Têm receio de abrir a porta de casa ao amor e ousadia para enfrentar, em nome dele, as austeras sentinelas que vigiam a cidade, quando e noite. Tem receio dos mil lugares onde o amor assoma, mas em mil lugares o buscam, se, por uma hesitação ou um silêncio, dele se perdem.

Escondem-se e reencontram-se. Incessante deslocação de corpos. De desejos. Como num jogo. E dizem: “O meu amado e para mim como um ramo de mirra”; “és formosa amiga minha, os teus olhos são como os das pombas”; ou “grava-me como um selo em teu coração/ como um selo em teu braço;/ pois o amor e forte como a morte”.

Falam do seu amor com uma intensidade tal que nos fazem ver, como escreve Paul Beauchamp, que “não existe sexualidade sem a palavra, como não existe desejo. A sexualidade humana e aquela que é dita”.

Os rabinos, no sínodo de Jabneh (90 d.C.), discutiram sobre a canonicidade do Cântico dos Cânticos. Alguns achavam‑no demasiado cheio de paixão. E lamentavam-se, sobretudo, que fosse, frequentemente, repetido em tabernas.

Mas na Mishna esta escrito: “O mundo inteiro não e digno do dia em que o Cântico dos Cânticos foi dado a Israel. Todos os livros são santos, mas o Cântico dos Cânticos e o mais santo de todos”.

Santa Teresa de Ávila diz recordar-se de “ouvir a um religioso um sermão admirável em extremo, e o mais dele foi a declarar estes regalos de que a Esposa tratava com Deus. E houve tanto riso e foi tão mal tomado o que disse, porque falava de amor, que estava espantada”. Contudo, a sua experiencia de leitora deste livro é bem diversa: "O Senhor tem-me dado, desde há alguns anos para cá, um grande gosto cada vez que ouço ou leio algumas palavras do Cântico dos Cânticos, e isto em tanto extremo que, sem entender com clareza o latim, a minha alma mais se recolhia e movia então do que com os livros muito devotos que entendo”.

Um dos contributos mais originais que a modernidade inscreveu na história da interpretação deste singular livro tem sido o da sua interseção com outros campos culturais, valorizando assim o fenômeno da intertextualidade. Os pólos que mais frequentemente recorrem neste confronto são o egípcio, o mesopotâmico e o da área sírio-palestina.

A dar confirmação a uma influência egípcia (sugerida, por exemplo, pelos perturbadores paralelos entre algumas passagens do nosso livro e textos contidos quer no Papyrus Harris 500, descoberto no Ramesseum de Tebas, quer nos Cantos da Grande Alegria do Coração do Papyrus Chester Beatty I), o Cântico dos Cânticos seria uma antologia de textos de diversão destinados, no Egito, as ocasiões festivas.

Esta tese tem um aliado vigoroso e imprevisto em Teodoro de Mopsuéstia que, no séc. V, contestava a canonicidade do Cântico dos Cânticos dizendo que ele celebrava, “sem intenção suplementar, as núpcias de Salomão com uma princesa egípcia”.

Por sua vez, a relação com a literatura mesopotâmica far-se-ia através de textos de índole cultual, vinculados a um cenário de hierogamia, que colocavam em ação as rivalidades amorosas dos deuses Dummuzi e Enkimdu e da deusa Inanna. Enquanto que da área sírio-palestina a influência viria sobretudo do folclore praticado no ciclo dos sete dias festivos que se sucedia a coroação matrimonial dos esposos, a maneira de um rei e de uma rainha.

Mas se é verdade que o confronto com estes modelos literários, próximos no tempo e no espaço ao escrito bíblico, fornece alguns contributos esclarecedores, ele não elide uma dificuldade essencial: o facto do estudo comparativo ser extremamente fragmentário, ignorando, como escreve Anne-Marie Pelletier, “a coerência global do texto” e a sua “inserção num contexto singular que o qualifica e o interpreta necessariamente”.

Cântico dos Cânticos retoma vocabulário comum aos cultos e rituais de exercícios religiosos coevos, nomeadamente vocabulário hierogâmico, mas fá-lo para o reinscrever num contexto que nega a relação mitológica do homem e da mulher, formulada aqui em termos históricos e não enquanto participação mágica do horizonte humano no divino.

Este livro, do séc. V ou IV a.C., como defende Maillot, “é, portanto, uma desmitização, uma  humanização e uma liberalização do amor. E a libertação em relação aos mitos da fecundidade. E a afirmação que o amor de um homem e de uma mulher e em si mesmo justificado”.

Recordemos que nenhum outro livro bíblico dá a palavra à mulher numa tal proporção. Ela busca e é buscada. Pede e é pedida. A sua palavra abre o canto: “Beije-me ele com os beijos da sua boca”. A mulher olha para o homem e avizinha-se a ele com a mesma impaciência e a mesma alegria que ele a ela.
Este co-protagonismo é muito interessante. Porque tensões, paradoxos, desníveis (por exemplo, o facto de a mulher não ser tratada em paridade, não ser tomada como sujeito) que não conseguiam resolução em outros tipos de discurso, conseguem-na primeiramente no discurso amoroso.

Na opinião do teólogo Karl Barth, os textos de Génesis 2 e o do Cântico dos Cânticos são os que, no Antigo Testamento, perspetivam de modo mais original o amor humano.

A tendência predominante é a que situa a sexualidade do Ser Humano em função quase exclusiva da posteridade e, por conseguinte, no contexto da vocação deste povo e da expectativa messiânica (um dos nascidos, entre os descendentes de David, seria o Messias, por isso a instituição matrimonial era tão importante).

No Cântico dos Cânticos temos a afirmação de um outro aspeto (em verdade, mais complementar que opositor): “O enamoramento – escreve Barth – não já do pai ou do chefe de família potencial, mas simplesmente do homem tal qual ele e diante da mulher tal qual ela é”.


José Tolentino Mendonça
In As estratégias do desejo
22.11.11 









        
                  


















































































"Em meu leito, durante a noite, procurei o amado da minha alma. Procurei-o, e não o encontrei. Vou, pois, levantar-me e percorrer a cidade, pelas ruas e pelas praças, procurando o amado da minha alma."
Cântico dos Cânticos 3,1-2





"O meu amado é claro e corado, inconfundível entre milhares. Sua cabeça é ouro puro e os anéis de seus cabelos, como cachos de palmeiras, negros como o corvo. Seus olhos são como pombas à beira dos riachos, lavadas em leite e repousando junto a torrentes borbulhantes.'

Cânticos dos Cânticos 5, 10-12)


"Como a macieira entre as árvores dos bosques, assim é o meu amado, entre os moços. À sombra de quem eu tanto desejara me sentei, e seu fruto é doce ao meu paladar." Cântico dos Cânticos 2,3



"As muitas águas não poderiam apagar o amor,  nem os rios, afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens da sua casa pelo amor,  seria de todo desprezado".
Cântico dos Cânticos 8:7


















































































De acordo com o título em 1.1, o cântico dos cânticos foi escrito por Salomão, filho do Rei Davi. Pode-se dizer que é "de Salomão", pois a expressão hebraica "de Salomão" (1.1) pode ser traduzida "de" Salomão (como o seu autor) ou "para" Salomão (como a pessoa à qual o livro é dedicado). A opinião tradicional entre judeus é a de que Salomão foi o seu autor (Cf. 1Rs.4.32); para os católicos este livro pertence ao agrupamento dos Sapienciais, que condensam a sabedoria infundida por Deus no povo de Israel. Como pertence ao grupo dos sapienciais recebe como autor a figura simbólica de Salomão, o modelo da sabedoria em Israel. Tem sua escrita estimada por volta do ano 400 a.C, e constitui-se de uma coletânea de hinos núpcias.
Segundo a Edição Pastoral da Bíblia, o livro é uma coleção de cantos populares de amor, usados talvez em festas de casamento, em que noivo e noiva eram chamados de rei e rainha, que foram reunidos, formando uma espécie de drama poético, e atribuídos ao rei Salomão, reconhecido em Israel como patrono da literatura sapiencial. A forma final do livro, remonta ao século V ou IV AC.
Tradução Ecumênica da Bíblia sustenta que seu autor certamente não é Salomão.

Cânticos dos Cânticos é um livro curto, com apenas oito capítulos. Apesar de sua brevidade, apresenta uma estrutura complexa que, por vezes, pode confundir o leitor. Diferentes personagens têm voz, ou falam, nesse poema lírico. Em muitas traduções da Bíblia, esses emissores alternam sua fala de modo inesperado, sem indicação ao leitor, dificultando, assim, sua leitura. Algumas versões, como a Almeida Revista e Atualizada e a Bíblia de Jerusalém, eliminam o problema com a indicação de quem está falando.

Os três participantes principais do poema são: (1) o noivo, o Rei (1,4.12) Salomão, isto é, "o Pacífico" (3,7.9) ; (2); a noiva, mulher mencionada como "Sulamita" (6.13), a Pacificada , aquela que encontro a paz (8,10) ; e as "filhas de Jerusalém" (2.7). Tais mulheres devem ter sido escravas da realeza que serviam como criadas da noiva do rei Salomão. No poema, servem como coro para ecoar os sentimentos da Sulamita, enfatizando seu amor e afeição pelo noivo.
Além dos personagens principais, são mencionados os irmãos da Sulamita (8.8-9), que devem ter sido seus meio-irmãos. O poema indica que ela trabalhava, por ordem dos irmãos, como "guarda de vinhas" (1.6).
Essa canção de amor divide-se praticamente em duas seções principais com mais ou menos o mesmo tamanho. O início do amor (cap. 1-4) e seu amadurecimento (cap. 5-8).
Por ser um poema escrito em uma linguagem considerada sensual, sua validade como texto bíblico já foi questionado ao longo dos tempos. O poema fala do amor entre o noivo e sua noiva. O nome de Deus só aparece nele de forma abreviada, em 8,6, "uma chama de Iah(weh)" .
A interpretação alegórica, segundo a qual o amor de Deus por Israel e o do povo por seu Deus são representados como as relações entre dois esposos, tornou-se comum entre os judeus a partir do séc. II DC, tal interpretação tem paralelo no tema da alegria nupcial que os profetas desenvolveram a partir de Oséias .
Orígenes seguia essa mesma linha, mas via as núpcias de Cristo com a Igreja, ou a união mística da alma com Deus , São João da Cruz teria o mesmo entendimento.
O poeta parece retomar a linguagem profética da aliança, como na expressão "procurar, encontrar" (3:1-2), além disso, a obra teria contatos com o Salmo 45 .
Outros exegetas entendem que o livro celebra o amor mútuo e fiel, que sela o matrimônio abençoado por Deus.


Contexto

Apesar de mostrar alguns vislumbres da corte de Jerusalém, o cenário campestre dá o tom do enredo. O autor faz alusões a jardins, árvores, flores, montanhas arborizadas, animais selvagens, vinhas e fontes. Os locais variam de Em-Gedi e Jerusalém: “Como um cacho de Chipre nas vinhas de En-Gedi, é para mim o meu amado.” (1:14); “Formosa és, amiga minha, como Tirza, aprazível como Jerusalém, formidável como um exército com bandeiras.” (6:4), no sul, até os montes Hermom: “Vem comigo do Líbano, minha esposa, vem comigo do Líbano; olha desde o cume de Amana, desde o cume de Senir e de Hermom, desde as moradas dos leões, desde os montes dos leopardos.” (4:8) e Líbano: “O rei Salomão fez para si um palanquim de madeira do Líbano.” (3:9); “Vem comigo do Líbano, minha esposa, vem comigo do Líbano; olha desde o cume de Amana, desde o cume de Senir e de Hermom, desde as moradas dos leões, desde os montes dos leopardos. Favos de mel manam dos teus lábios, minha esposa! Mel e leite estão debaixo da tua língua, e o cheiro das tuas vestes é como o cheiro do Líbano. És a fonte dos jardins, poço das águas vivas, que correm do Líbano!” (4:8,11,15), no norte.

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